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terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Salões e crítica institucional


ARTES MUITO CONTEMPORÂNEAS
Salões e crítica institucional
Por Juliana Monachesi


"Cartas-fósforo (queime o acervo)", parte do trabalho de correspondência da artista Graziela Kunsch para os funcionários do MAM-Bahia, integrante do projeto "Rejeitados"

"As mediocridades são aceitas. As paredes ficam cobertas de telas honestas e perfeitamente nulas. De cima a baixo, de um lado a outro, vocês podem verificar: nenhum quadro que choque, nenhum quadro que atraia. Lavaram a cara da arte, pentearam-na com cuidado: ela se tornou um honesto burguês de chinelos", escreveu Emile Zola acerca do Salão de Paris de 1866.


Três anos após a realização em Paris do "Salão dos Recusados" (iniciativa do governo francês em resposta ao escancarado aumento de críticas ao júri, que selecionara apenas 2 mil de 5 mil obras inscritas, e dava crescentes mostras de conservadorismo a cada edição do evento), a mesmice estava de volta.

Hoje, exatos 140 anos após o "Salão dos Recusados", o olhar viciado dos júris de salões volta à berlinda.

O tiroteio vem de todos os lados: artistas mandando projetos que criticam a estrutura dos salões para o júris de seleção dos mesmos; artistas organizando exposições de recusados paralelas a mostras em que houve seleção via portfólio; artistas apresentando trabalhos nos eventos à revelia da seleção do júri; artistas boicotando o circuito de salões (ou eventos realizados em moldes semelhantes) brasileiros.

Herdeiros assumidos do "Happening da Crítica" (1967), de Nelson Leirner, estes "jovens incendiários" vieram para abalar a faculdade de juízo na arte.

No site do MAM da Bahia, figura entre os selecionados para o 9º Salão da Bahia, edição de 2002, um coletivo intitulado "Rejeitados", classificado pelo júri como um projeto de "correspondência" de autoria dos grupos After-Ratos, Laranjas, Valmet, Valderramas, EmpreZa, Urucum, Bete Vai à Guerra.

Na realidade, um número indeterminado de grupos de artistas (a idéia inicial era que 31 grupos participassem da ação de "guerrilha", mas diversos dos contactados decidiram não se envolver), articulados por iniciativa dos artistas Graziela Kunsch e Arthur Leandro, enviou diferentes propostas ao Salão da Bahia acrescentando à inscrição a seguinte cláusula: "Critério de exclusão: só me aceito se o outro for aceito: este trabalho só poderá ser apresentado/aceito se todos os demais trabalhos chamados 'Rejeitados' forem aceitos".

O plano dos idealizadores da ação era forçar o júri a recusar todos os projetos, uma vez que o Salão da Bahia seleciona no máximo 30 propostas a cada edição. Caso o critério de exclusão fosse respeitado pelo júri, a existência de 31 propostas que se excluem mutuamente no caso de não serem todas as 30 demais aceitas inviabilizaria a própria existência do evento.

O "Rejeitados" foi feito para ser rejeitado. Entretanto, o que os integrantes da banca de seleção (os críticos de arte Luiz Camillo Osório, Denise Mattar e Marcus Lontra, o colecionador Gilberto Chateaubriand e o diretor do MAM, Heitor Reis) entenderam por bem fazer foi juntar todos os projetos que continham essa mesma cláusula em um único.

Luiz Camillo Osório conta que o júri considerou a crítica muito pertinente e saudável. "O projeto foi entendido como uma afronta ao júri, mas uma afronta interessante, que de certa maneira acabou produzindo efeitos nos critérios, tornando a seleção mais abrangente", afirma.

Para ele, ocorreu uma reverberação, por parte das pessoas envolvidas na seleção, dessa crítica incisiva ao quão excludente é o processo seletivo. Mas o crítico de arte e curador refrata a concepção de que o júri, ao agrupar todos os inscritos como "Rejeitados" em um único trabalho, não teria entendido o projeto. "Nossa decisão pretendeu indicar o quanto ser rejeitado não cabia a eles decidir, cabia a nós".

Além disso, os projetos eram irrealizáveis, segundo o crítico, daí a decisão de "editar" a iniciativa. O júri sugeriu que os portfólios do grupo de "Rejeitados" fossem expostos em cima de uma mesa, mas os artistas "à la Fluxus" se opuseram ao que chamaram de musealização.

Debates via e-mail se sucederam durante meses, até que os artistas optaram por plotar na parede do museu o endereço do site que reunia todos os e-mails trocados entre eles, desde a concepção do projeto até a decisão sobre o que seria "exposto". Fazendo um balanço posterior, Camillo Osório afirma que o interesse maior desse episódio foi a circulação de idéias do Amapá a Porto Alegre, uma oportunidade de "mostrar o quanto o mapa artístico brasileiro é amplo e multi-regional".

Os projetos eram acima de tudo muito bem-humorados. O grupo EmpreZa, de Goiânia, propôs, sob o título "Com Quantas Vacas se Faz uma Boiada", realizar um happening em área externa no Solar do Unhão, com cinco vacas e seus bezerros e um painel reunindo representações estéticas de vaca (de Rembrandt a embalagens de leite), que consistiria em revezamentos entre vacas e espectadores contemplando o painel com as reproduções, ordenha das vacas pelos integrantes do grupo e por espectadores, procura e extermínio de carrapatos e bernes nas vacas, "na verdade como pretexto para se fazer um cafuné nas vaquinhas. Vaca adora cafuné" e, finalmente, "lamber sal e tomar leite".


"O porco não é uma metáfora"

Animais não faltavam nos projetos. Emblematicamente, todos vivos. A ligação com o porco empalhado, ou "Happening da Crítica", de Nelson Leirner, é cristalina.

No famoso episódio, em 1967, o artista carioca inscreveu e enviou ao júri do 4º Salão de Arte Contemporânea do Distrito Federal dois trabalhos, ambos intitulados "Matéria e Forma": um porco de verdade (empalhado), fechado em um engradado de madeira com um pernil amarrado ao pescoço, e um pedaço de tronco de árvore com uma cadeira de madeira acoplada. Entendendo tratar-se de uma legítima discussão acerca de matéria-prima e produto final, as obras foram aceitas no salão.

Mais provável é que tenham aceito os trabalhos por serem assinados por Leirner, que havia conhecido uma projeção meteórica em pouco tempo de carreira. O artista foi então à público (por meio dos jornais) contestar a escolha do júri (formado por Mário Pedrosa, Frederico Moraes, Walter Zanini, Mário Barata e Clarival do Prado Valadares).

Seguiu-se um escândalo, a comissão julgadora prestando esclarecimentos sobre seus critérios, e o episódio entrou para a história como um desmascaramento da instituição "salão de arte".

Em artigo de 11 de fevereiro de 1968 no “Correio da Manhã”, Pedrosa apresentou a seguinte justificativa: "Esperava Nelson Leirner que o júri o tivesse recusado? (...) Por que não fôra (a obra) 'criada' ou não tinha originalidade? Mas se se trata de um 'porco empalhado', alguém o empalhou. Empalhar animais é uma arte reconhecida e apreciada, a taxidermia". Na seqüência do artigo, o crítico deixa de lado a ironia e classifica a obra como "readymade".

A proposta enviada pelo artista goiano Alexandre Pereira (Grupo Valmet) ao 9º Salão da Bahia consistia na criação de um porco, a partir do momento do envio da inscrição ao MAM, que estaria presente na abertura da exposição.

Alguns trechos do projeto: "O Porco não sabe que é arte. Estou enviando esse projeto no dia 22 (vinte e dois) de agosto de 2002 (dois mil e dois); 15 (quinze) após essa data o não recebimento de nenhuma resposta implicará em ações drásticas contra o Porco, ou seja, o objeto ARTÍSTICO. Em virtude da pouca verba oferecida pelo 9º Salão de Arte da Bahia e por uma questão de economia este só receberá as avaliações diárias sobre o estado do Porco após a confirmação oficial de aceitação. Independente da confirmação oficial o Porco já está sendo criado. O dinheiro do pró-labore oferecido pelo 9º Salão de Arte da Bahia será usado única e exclusivamente para alimentar o Porco; para eventuais despesas de saúde; e para transporte".

Sob a rubrica "aviso", o artista alertava para a ruptura operada entre seu trabalho e o de Nelson Leirner: "O Porco não é uma metáfora. O Porco existe e está sendo criado num cercado. O Porco salvará o mundo da arte. O Porco se sentirá um artista de verdade (...), por alguns momentos será importante e depois não será mais. O Porco não é uma referência a porcos antigos. O Porco não é uma metáfora".

Uma prova concreta da existência do porco é uma foto de Alexandre Pereira segurando o filhote no colo que circulou na lista de e-mails do "Rejeitados".

Em novembro de 2002, durante as acaloradas discussões por e-mail sobre como formatariam a presença do "grupo" na exposição e no catálogo, Graziela Kunsch chegou a sugerir que a foto do artista fosse a única imagem no catálogo, ao lado da inscrição "o porco não é uma metáfora".

Trechos de seu e-mail do dia 12 de novembro: "É mais que um porco vivo depois do porco empalhado; é um porco vivo e amado (...) tudo isso para deixar claro que a briga é com o sistema das artes plásticas, com as obras empalhadas, com as cartas de aceitação (que assinam na verdade 1700 rejeições)..." (foram 1.697 os inscritos no 9º Salão da Bahia).

Para o artista Jorge Menna Barreto, integrante do grupo Laranjas, de Porto Alegre, a experiência do "Rejeitados" abriu uma possibilidade de pensar de forma mais livre sobre o que não cabe nos salões.

"Como falar disso e ser o mais inclusivo possível? A experiência e a realidade dos rejeitados nunca conseguiu achar uma forma de representação satisfatória. Ao mesmo tempo, a nossa inconformidade nos fez tentar ir até o final e apresentar algo, num desejo talvez romântico de expansão desses paradigmas e de luta contra a incomunicação", afirma.

Menna Barreto avalia a participação do grupo gaúcho no "Rejeitados" como uma oportunidade de perceber que a falência e limitação dos meios e das instituições para dar conta de uma grande parcela da produção contemporânea pode ser objeto de debate.


"Anual dos recusados"

Na edição do ano passado da mostra final da Faap (34ª Anual de Artes), que é elaborada a partir da seleção de propostas enviadas pelos alunos a uma comissão, aconteceu uma movimentação por parte dos artistas recusados, que resultou em uma exposição paralela.

A "anual dos recusados" foi montada no andar de cima do prédio da faculdade, com trabalhos que teriam supostamente sido recusados. Segundo o coordenador do departamento de artes da Faap, Marcos Moraes, a história é outra: "Havia trabalhos não inscritos na Anual, havia alunos que também mandaram outro(s) trabalhos, assim como alunos que tiveram parte de seu trabalho selecionado, e mostraram o 'recusado', portanto participavam das duas".

Não é a primeira vez que isso ocorre na Faap, cujo departamento de artes tem tido um papel importante no ensino de artes, assemelhando-se ao vigor da Escola do Parque Lage nos anos 80 (Rio de Janeiro). Já houve inclusive uma "Anulal de Arte". Os alunos cobram que seus trabalhos sejam considerados como "trabalhos de alunos" e não segundo "critérios de mercado". Querem valorizar um certo perfil "experimental", de trabalhos em processo, próprio a um ambiente de formação.

Um dos professores da instituição, Gustavo Rezende, concorda que a "Anual de Artes" vem adotando uma visão muito profissionalizante e que a obrigação dos alunos é gerar um sistema alternativo de inserção.

A bandeira dos "rejeitados" comportaria uma lista sem fim. Dois grandes eventos (com formato de seleção por júri) registraram queixas dos participantes: a 1ª Mostra Rio Arte Contemporânea, no MAM-Rio, e o 4º Prêmio Interferências Urbanas, no bairro carioca de Santa Teresa.

No primeiro caso, foi recusado, sob a alegação de "falta de ineditismo" (uma das cláusulas do edital), um projeto que consistia em mostrar todos os portfólios dos artistas recusados no evento, permitindo que o visitante se tornasse, de posse de todos os dossiês apresentados à banca, o "júri do júri".

Como o mesmo projeto havia sido selecionado em outro Salão, embora contemplando outro universo de inscrições, a organização da Rio Arte considerou que estaria infringindo o regulamento.

No caso do Prêmio Interferências Urbanas, foram selecionados oito projetos, privilegiando aqueles de grande apelo visual. Muitos dos artistas recusados não se intimidaram e apresentaram seus trabalhos à revelia da organização, considerando que não precisariam de seu aval já que a proposta era fazer um trabalho nas ruas do bairro, de caráter público.

Finalmente eis uma geração que entoa os hinos "Loser", de Beck, e "Creep", do "Radiohead", dois dos maiores acontecimentos do pop rock nos anos 90, bem à vontade.

Juliana Monachesi
É jornalista, curadora-adjunta do Rumos Itaú Cultural Artes Visuais 2001/2003 e integra o grupo de Estudos do Centro Universitário Maria Antonia.

http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/1595,1.shl

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